Ainda que o Abade de Claraval não pertença ao grupo de fundadores do Mosteiro de Cister, sua importância para a Ordem é tão grande, que, desde muito cedo, falou-se nos cistercienses como os filhos de S. Bernardo. Por isso parece justificável uma pequena digressão para apresentá-lo mais detalhadamente. Bernardo nasceu em 1090 no castelo de Fontaines, do qual seu pai era o senhor. Certamente tratava-se de uma pequena fortificação para a defesa avançada de Dijon, capital da Borgonha. Cavaleiro a serviço do Duque da Borgonha, Tecelino era casado com Alete de Montbard. Embora sua família pertencesse à pequena nobreza, por sua ascendência, sobretudo do lado materno, Bernardo parece ter sido ligado à grande nobreza e talvez mesmo à realeza, incluindo a casa ducal da Borgonha. Seus diversos laços de parentesco, segundo alguns estudiosos, teriam sido de grande ajuda para sua atuação nos diversos empreendimentos a que esteve ligado.
A formação de Bernardo foi feita em Chatillon, onde os cônegos da igreja de Saint Vorles possuíam uma bem conceituada escola. Destinado inicialmente a uma carreira clerical, passou por um processo de conversão e decidiu entrar no Mosteiro de Cister, justamente por sua reputação de rigor e santidade de vida. Bernardo desejava então morrer para o mundo e ocultar-se numa existência humilde, dedicada inteiramente a Deus. A maioria dos historiadores dos inícios de Cister admite que seu ingresso no Novo Mosteiro tenha ocorrido em 1113. Sabe-se que nesse ano Cister fundou sua primeira filha, La Ferté, o que indicaria que a comunidade estava em crescimento e em condição de expandir-se. Qual a relação de S. Bernardo com essa fundação? Seus biógrafos afirmam que entrou em Cister com trinta companheiros, muitos dos quais eram seus parentes, incluindo alguns de seus irmãos. Mais que isso, Bernardo foi o seu líder espiritual, pois atuou de forma a convencê-los a ingressar na vida monástica e, por alguns meses, exerceu o papel de seu formador, transmitindo seus próprios ideais ao grupo que já vivia em comum, preparando-se para sua admissão no Novo Mosteiro. Discute-se hoje a afirmação desses primeiros biógrafos e de uma longa tradição, segundo a qual Cister foi salva da extinção pelo ingresso de Bernardo e de seu grupo. De fato, se o mosteiro não recrutava e caminhava inexoravelmente para seu fim, de onde lhe vinham as forças para fundar uma nova abadia? Há porém quem sustente, em amparo da tese tradicional, que a fundação de La Ferté foi feita em previsão do acolhimento do grupo de Bernardo que já estaria em contacto com Cister e seu abade Estêvão Harding. Contudo, mesmo se La Ferté não dependeu da entrada daquele grupo e Cister não estava a ponto de desaparecer, todos concordam que o impacto de Bernardo e de seus companheiros foi decisivo para sua expansão posterior, incluindo as fundações de Pontigny (1114), Morimond e Clairvaux ou Claraval (1115), a testa da qual o jovem Bernardo foi colocado como abade. Bernardo e seus companheiros terão daí por diante uma considerável influência na Ordem em formação, sobretudo no plano dos ideais.
Voltando porém à pessoa de Bernardo, sua personalidade extremamente rica e complexa tem despertado o interesse dos historiadores ou dos estudiosos da espiritualidade de todas as épocas. Ainda na atualidade, regularmente são lançadas publicações sobre sua vida ou obra. Aliás, falar sobre o Abade de Claraval de forma compreensiva é tarefa difícil e arriscada, pois muitos e diversos são os aspectos a considerar. Pode-se abordar o monge e o abade, com seu exemplo de vida e sua doutrina espiritual que deixa entrever o místico, mas não se pode esquecer o homem público e o reformador, o escritor genial - talvez o maior de seu tempo - ou o homem sensível e de intenso relacionamento humano. Sabe-se que seu desejo inicial de humilhação e ocultamento não pôde ser realizado. Desde muito cedo Bernardo destacou-se, primeiro como apologista e difusor do monaquismo reformado de Cister, depois, a partir de seu envolvimento na defesa da legitimidade da eleição do papa Inocêncio II, tornou-se uma personalidade de projeção européia. A promoção dessa causa colocou-o em contacto com reis e príncipes e a deposição de Anacleto que se havia imposto como papa em Roma, deve-se em grande parte a sua atuação. Desde então o prestígio de S. Bernardo não conheceu limites. Sua atuação no plano eclesial mais amplo foi marcada pelos ideais da Reforma Gregoriana. Seu zelo pela reforma da Igreja levou-o a interferir em diversas questões, seja corrigindo e admoestando bispos - certa vez escreveu ao arcebispo de Sens, seu próprio metropolita, que a sede episcopal que ocupava exigia um homem de relevantes méritos e lamentava não encontrá-los nele - e soberanos, seja combatendo erros doutrinais e heresias. A carta 238, a primeira das muitas que escreveu ao papa Eugênio III, seu antigo discípulo e monge de Claraval, é muito clara quanto às suas preocupações:
“Quem me dera poder contemplar, antes de minha morte, a volta da Igreja aos belos tempos apostólicos, quando estendia as redes para apanhar almas e não para pescar riquezas de ouro e prata.”
Embora estivesse consciente do papel próprio do monge, sua atividade externa que o levou freqüentes vezes para fora do claustro foi movida pela caridade e o desejo de servir à Igreja. Deve ser observado, porém, que sua ação não teria nenhuma repercussão se não estivesse baseada na sua autoridade moral e na reputação de virtude de que gozava. Sua vasta correspondência - mais de quinhentas cartas foram conservadas - mostra-o em contacto com as mais diversas categorias de pessoas, religiosos e religiosas, prelados, papas, nobres, reis e rainhas, dando a perceber a grande ascendência que tinha sobre muitos de seus correspondentes. S. Bernardo foi procurado para dirimir conflitos, efetuar reconciliações, opinar sobre questões teológicas, confortar e dirigir pessoas que depositavam nele toda sua confiança. A ele coube, por incumbência do papa Eugênio III, pregar a Segunda Cruzada, vista por Bernardo antes como empreendimento espiritual e uma causa justa do que como empresa bélica ou de conquista. Enfim, pode-se dizer que foi canonizado, ainda em vida, por seus contemporâneos, que viam nele, mais do que o grande abade e pregador que falava com autoridade a reis e papas, o modelo acabado de santidade. Por isso mesmo, Guilherme de Saint-Thierry, um dos mais fecundos e cultos autores espirituais da época, seu grande amigo e também abade, mas depois simples monge cisterciense, iniciou, ainda enquanto Bernardo vivia, sua biografia, certo de estar narrando a vida de um santo. Eis aqui um trecho deste escrito, denominado Vita Prima, onde Guilherme narra seu primeiro encontro com o ainda jovem abade de Claraval, em convalescença numa pequena cabana próxima ao mosteiro, em razão de seu esgotamento causado por austeridades excessivas:
“ Tendo entrado nessa cabana real, ao considerar tanto a habitação, como aquele que ali estava, senti-me penetrado de um tão grande respeito que, invoco a Deus por testemunha, era como se tivesse subido ao seu altar sagrado. Experimentava tão grande felicidade em contemplar esse homem e um tal desejo de compartilhar sua pobreza e a simplicidade de sua habitação que, se me fosse dada a escolha, nada teria desejado mais que permanecer sempre a seu lado para servi-lo.”
Incansável foi também o promotor da reforma monástica. Muito da intensa atividade de S. Bernardo explica-se pelo desejo de difundir a vida cisterciense e fazer crescer a filiação de sua querida Abadia de Claraval . Nesse campo sua atuação foi prodigiosa. O ritmo de expansão da Ordem Cisterciense durante sua vida nunca mais foi atingido. Bernardo pôs a serviço dessa causa seu talento extraordinário de escritor e teve o mérito de dar forma e expressão, de maneira eloqüente e atrativa, ao ideal de Cister. Uma célebre passagem de sua carta 142 tornou-se para a posteridade uma espécie de definição da vida cisterciense:
“Nossa maneira de viver é de abnegado serviço, de humildade, de pobreza voluntária. É a obediência, paz e alegria no Espírito Santo. Nossa vida é estar sob um mestre, um abade, uma regra e uma disciplina. Nossa vida é aplicar-se ao silêncio, praticar o jejum, as vigílias, orações, trabalho manual e sobretudo seguir o mais excelente caminho que é a caridade. Em todas essas observâncias, ir crescendo dia-a-dia e nelas perseverar até o último dia.”
Mas o monge cheio de ardor cuja ascese rigorosa comprometeu para sempre a saúde, soube também ser um pai espiritual cheio de ternura, que lamenta estar fora do mosteiro e longe de seus monges de Claraval. Da Itália, escreveu certa vez a Claraval, na carta 143, que, enquanto seus filhos choram pela ausência de um só, ele, Bernardo, deve chorar muito mais, pois é um só a sentir a ausência de todos. De fato, em sua concepção, o mosteiro é uma escola de caridade, onde Cristo é o mestre e a disciplina ministrada é o amor. Exercitando-se no amor mútuo e no amor a Cristo o monge prova ser discípulo da verdade. No exercício desse encargo de paternidade espiritual, além de sua terna caridade, ajudou-o muito seu conhecimento da alma humana. Seus escritos revelam-no possuidor de fina psicologia , como nas descrições que faz das diversas manifestações do orgulho humano no seu “Tratado dos graus da humildade e da soberba”, sua primeira obra, onde apresenta o itinerário da conversão à união mística com Deus. Eis aqui um trecho cheio de humor em que apresenta o monge tomado pela jactância, o quarto grau da soberba:
“É preciso que fale ou então arrebentará. Tem muito o que dizer e não pode conter-se mais. Tem fome e sede de ouvintes, aos quais lance suas vaidades, a quem declare seus sentimentos e faça conhecer o que é e o quanto vale. Encontrada ocasião de falar, se o assunto tratado são as letras, saem coisas novas e velhas, voam as frases, ressoam empoladas as palavras. Antecipa-se a quem o interroga, responde a quem não lhe pergunta. Ele mesmo pergunta, ele mesmo resolve, interrompendo a frase incompleta do interlocutor.”
Sua vastíssima obra compreende alguns tratados, uma grande coleção de sermões, cartas e outros escritos. A contribuição de Bernardo para a Teologia, sobretudo na Cristologia, ainda está para ser devidamente avaliada. Sua sólida reputação de autor espiritual valeu-lhe o título de doutor da Igreja. Alguns de seus mais belos sermões foram dedicados à Virgem Maria, uma devoção de todos os cistercienses.
Do que escreveu, sobretudo dirigindo-se a monges, pode-se colher algo de seu itinerário espiritual. O ponto inicial deste parece ter sido um sadio encontro consigo mesmo de maneira a conhecer a própria ambigüidade. Bernardo percebeu certamente em si, nos seus primeiros anos de vida monástica, o homem sujeito a fraquezas e paixões, como ele mesmo o admite nesta passagem de um de seus sermões sobre o Cântico dos Cânticos (s. 16,1):
“Muitas vezes, não me envergonho de dizê-lo, sobretudo no início, quando entrei no Mosteiro, descobria em mim um coração duro e frio...”
Nesse processo de autodescoberta chegou à humildade que define como o conhecimento de si mesmo que torna o homem desprezível a seus próprios olhos. Todavia o autoconhecimento, com todas as decepções em que acarreta, não o levou ao desespero ou ao pessimismo mas projetou-o para Cristo. Assim descreve sua atitude (cf. s. 43,1 sobre o Cântico):
“ Também eu, quando me converti, irmãos, dei-me conta de que me faltava toda espécie de méritos. Em seu lugar tratei de fazer um pequeno ramalhete, para colocar junto ao meu peito, contendo todas ansiedades e amarguras de meu Senhor:...as bofetadas, as troças, as acusações, os cravos e todos os demais sofrimentos que sabemos ter padecido até a saciedade....para a salvação da humanidade.”
Bernardo, o amigo de Cristo, ascendeu na vida espiritual através da humildade e da confiança em sua misericórdia e seu amor. Por essa sadia ascese, que o fez olhar com simpatia e compaixão para seus irmãos, em quem via a mesma fragilidade que soube reconhecer em si, abriu-se a uma caridade mais perfeita e tornou-se mais capaz de receber os dons de Deus. Em um texto composto na última etapa de sua vida, certamente expressou algo do que viveu em seu íntimo (cf. Sermão sobre o Cântico 74, 5-6):
“ Ocorre às vezes que a alma é de tal forma arrastada para fora de si, separando-se de seus sentidos corporais, que não sente mais a si mesma, pois só é capaz de sentir o Verbo. Isto se realiza quando o espírito, encantado com a doçura do Verbo inefável, rouba-se por assim dizer a si mesmo, ou melhor, é arrebatado e tirado a si para gozar do Verbo.”
Num outro plano, encontramos o homem que se revela em toda sua sensibilidade afetiva, através de grandes e ternas amizades. Durante sua vida Bernardo esteve ligado intimamente a várias pessoas, homens e mulheres. Em suas amizades o natural - afeição, simpatia, afinidades - está ligado ao sobrenatural, os amigos e amigas eram amados em Deus. É assim que podia escrever à duquesa Emengarda da Bretanha, na carta 116:
“Se pudesses ler em meu coração o que aí o dedo de Deus dignou-se escrever quanto à minha afeição por ti...”
Bernardo, cuja saúde era precária desde a juventude, faleceu afinal em 1153, venerado como um santo e rodeado de seus monges em Claraval. Era então, segundo a expressão de Galand de Reigny, também cisterciense, o homem “cuja face todo o mundo desejava contemplar.”